Tempo de leitura: 5 minutos.
O comportamento autolesivo é um fenômeno amplo que envolve autolesão não suicida, tentativas de suicídio e suicídio, com os dois últimos caracterizando o comportamento suicida. Embora a autolesão não suicida não envolva intenção de morrer ou alta letalidade, tem sido consistentemente associada a esse comportamento.
O comportamento suicida é complexo, varia em gravidade e abrange várias ações executadas por uma pessoa que podem levar a óbito, incluindo ideação suicida (pensamentos sobre a morte e o desejo de estar morto), planos de suicídio (pensamentos sobre danos que possam resultar em morte), comunicações ou ameaças sobre suicídio (transmitindo ou expressando pensamentos sobre a intenção explícita ou implícita de suicídio), tentativas de suicídio (comportamento autoinfligido com o objetivo de morrer, porém, com um resultado não fatal) e suicídio. O suicídio envolve um ato deliberado de violência autodirigida, cujo resultado é a morte.
Suicídio
O suicídio é uma das principais causas de morte no mundo, com aproximadamente 1 milhão de mortes por ano; corresponde a mais da metade de todas as mortes violentas no mundo e é atualmente a segunda principal causa de morte na faixa etária de 15 a 29 anos. No entanto, o suicídio é encontrado em todas as faixas etárias, com uma tendência crescente observada entre os adolescentes, tornando-o um problema de saúde pública relevante.
As informações disponíveis sobre o comportamento suicida muitas vezes carecem de padronização, devido a questões culturais, legais e burocráticas que variam amplamente em diferentes regiões do mundo e afetam a pesquisa em todas as faixas etárias. Na tentativa de melhorar a pesquisa nessa área, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) propôs uma padronização dos termos relacionados à violência autodirigida, definindo suicídio como “morte causada por comportamento prejudicial autodirigido com qualquer intenção de morrer como resultado do comportamento”. Nas crianças, no entanto, permanecem questões sobre como caracterizar e avaliar o comportamento suicida.
Setembro Amarelo: veja os sinais para um possível suicídio
Comportamento autolesivo e mortalidade
Dessa forma, com o objetivo de descrever e analisar dados sobre comportamento auto lesivo e a mortalidade relacionada em crianças menores de 10 anos no Brasil, Studart-Bottó e colaboradores (2019) conduziram o estudo Self-injurious behavior and related mortality in children under 10 years of age: a retrospective health record study in Brazil, publicado em agosto no Brazilian Journal of Psychiatry.
Os autores realizaram um estudo retrospectivo descritivo utilizando dados secundários de atenção à saúde pública extraídos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) no Brasil. Os autores disponibilizaram os bancos de dados para acesso online.
Resultados
Studart-Bottó e colaboradores (2019) descreveram os seguintes resultados:
- No Brasil, de 1998 a 2018, foram registradas 11.312 internações de crianças menores de 10 anos no sistema público de saúde (SIH) resultantes de comportamento auto lesivo (automutilação intencional – CID-10 X60-X84). Destes, 65 morreram (taxa de mortalidade de 0,56). O grupo de óbitos incluiu 42 meninos, 28 com idade entre 1 e 4 anos, 21 entre 5 e 9 anos e 16 menores de 1 ano. Infelizmente, o SIH não inclui informações clínicas e sociodemográficas adicionais sobre esses pacientes;
- As internações hospitalares foram mais frequentes na faixa etária de 1 a 4 anos, com 6.028 casos (53,3%), e foram menos frequentes em crianças menores de 1 ano, com 911 casos (8,1%). Em todas as faixas etárias, os meninos foram predominantes;
- Das cinco regiões brasileiras, o Sudeste teve o maior número de internações, com 4.967 casos (43,9%). O menor número foi registrado no Centro-Oeste, com 961 casos (8,5%);
- A maior proporção de internações foi causada por intoxicação por substâncias médicas, com 4.310 casos (38,1%); destes, 2.007 (46,6%) ocorreram na região Sudeste. O envenenamento por substâncias não médicas foi responsável por 3.136 casos (27,7%), dos quais 1.556 (49,6%) ocorreram no Sudeste. O menor número de envenenamento por substâncias não médicas foi registrado na região Norte, com 176 casos (5,6%);
- O corte/perfuração de objetos representou 1.005 casos (8,9%), variando de 68 casos (6,8%) no Centro-Oeste a 511 casos (50,8%) no Sudeste. Em 1.791 internações (15,8%), o método de automutilação não foi especificado; destes, 765 (42,7%) foram registrados na região Norte;
- De 1996 a 2016, foram registradas no SIM 91 mortes resultantes de comportamento auto lesivo em crianças menores de 10 anos de idade. Destes, 81 (89%) referiram-se a crianças entre 5 e 9 anos, nove (9,9%) referiram-se a crianças de 1 a 4 anos e 1 (1,1%) referiu-se a uma criança com menos de 1 ano de idade. A maioria dos casos envolveu meninos, totalizando 74 casos (81,3%). A região Nordeste teve o maior número de incidentes, com 34 casos (37,4%), e o Centro-Oeste, o menor número, sete casos (7,7%). Segundo o SIM, 74 crianças eram do sexo masculino, sendo a maioria de cor parda (n = 39) e 28 brancas. Em relação ao local da morte, 37 morreram em casa, 32 no hospital, um em outra clínica de saúde e 21 deles foram encontrados em áreas alternativas (rodovias públicas e outras áreas).
LEIA TAMBÉM: Uso de ketamina está associado com menor risco de suicídio
Conclusões
De acordo com os autores, este parece ser o primeiro estudo brasileiro que descreve e analisa dados sobre comportamento autolesivo e a mortalidade relacionada em crianças menores de 10 anos no Brasil. Studart-Bottó e colaboradores (2019) relatam que, embora esses dados enfatizem a vulnerabilidade das crianças brasileiras, o real significado dessas informações ainda precisa ser esclarecido.
Os resultados encontrados pelos pesquisadores mostram a necessidade de melhor descrever e entender o verdadeiro significado do comportamento autolesivo em crianças. Os autores questionam se é resultado de negligência ou reflete uma ação intencional por parte dos pais e cuidadores, ou se esses dados também refletem o comportamento suicida nessa faixa etária. Outra questão levantada pelos autores é: com que idade a criança é capaz de entender o significado da morte e desejá-la? Algumas hipóteses podem ser levantadas – um adulto pode deliberadamente relatar errado o motivo da hospitalização ou morte. Nesse sentido, negligência ou infanticídio seriam ocultados. Outra hipótese seria a ocorrência real de autolesão não suicida ou mesmo comportamento suicida.
Os pesquisadores destacam que os dados obtidos podem refletir a falta de padronização de critérios para classificar eventos dessa natureza nessa faixa etária, criando assim a necessidade de estudos específicos nessa área. Portanto, é necessário treinamento profissional na coleta e interpretação dos dados do SIB, além da correta identificação e registro público das tentativas de suicídio em crianças. Novos estudos precisam avaliar os fatores de risco para esse comportamento no Brasil.
Independentemente de qualquer fator, os autores frisam que a literatura sobre suicídio infantil reconhece que as cognições suicidas são preditoras de uma futura tentativa de suicídio. Além disso, a magnitude da influência exercida pela psicopatologia e pelo histórico familiar de tentativas de suicídio é diferente na infância e na pré-adolescência. Existem também evidências de que o desenvolvimento de pensamentos suicidas em crianças está associado a vulnerabilidades cognitivas específicas, como estilo inferencial negativo, questões de regulação emocional e ocorrência de traumas na infância com recursos de enfrentamento ineficazes.
Os autores reconhecem algumas limitações: embora o estudo revele dados importantes sobre o comportamento auto lesivo em crianças menores de 10 anos de idade no Brasil pela primeira vez, o estudo é retrospectivo e os dados foram extraídos das bases de dados oficiais no país. Nenhuma informação estava disponível no histórico de saúde da criança ou em aspectos como abuso sexual, negligência dos pais e cuidadores ou outros fatores de risco para autolesão não suicida ou comportamento suicida. Existe também a possibilidade de subnotificação e de erros de classificação nos diagnósticos primários e secundários.
No entanto, o estudo mostra a importância do quanto as crianças precisam de supervisão. Quanto menor a idade, maior o cuidado e a atenção necessários à criança. Muitas lesões na infância resultam de negligência do cuidador, como não manter produtos químicos, medicamentos, armas de fogo e objetos perfurantes fora do alcance das crianças e que podem levar à morte. Nesse sentido, a falta de pleno conhecimento dos riscos domésticos pode ser a causa desse comportamento perigoso, como a ingestão de um produto ou substância sem estar ciente da possível toxicidade.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), em parceria, organizam nacionalmente a campanha Setembro Amarelo desde 2014. Oficialmente, o dia 10 de setembro é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, mas a campanha acontece durante todo o ano.
É médico e também quer ser colunista do Portal PEBMED? Inscreva-se aqui!
Autora:
Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Valença. Residência médica em Pediatria pelo Hospital Federal Cardoso Fontes. Residência médica em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Saúde Materno-Infantil pela Universidade Federal Fluminense (Linha de Pesquisa: Saúde da Criança e do Adolescente). Doutora em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-graduanda em neurointensivismo pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR). Médica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ e do Hospital Caxias D’Or. Membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Pediatria do IDOR no Rio de Janeiro. Acompanhou as UTI Pediátrica e Cardíaca do Hospital for Sick Children (Sick Kids) em Toronto, Canadá, supervisionada pelo Dr. Peter Cox. Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). Membro do comitê de filiação da American Delirium Society (ADS). Coordenadora do Latin American Delirium Special Interest Group (LADIG). Membro de apoio da Society for Pediatric Sedation (SPS).
Referências bibliográficas:
- STUDART-BOTTO, Paula et al . Self-injurious behavior and related mortality in children under 10 years of age: a retrospective health record study in Brazil. Braz. J. Psychiatry, São Paulo, 2019 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462019005013103&lng=en&nrm=iso>. access on 07 Sept. 2019. Epub Aug 05, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/1516-4446-2018-0355.